De Starcraft a Age of Empires: quando a arquitetura é o vídeo-game

Nesta nova colaboração intitulada originalmente 'Arquiteturas para o sistema e sistemas para a arquitetura', o arquiteto espanhol Manuel Saga - cofundador do blog MetaSpace - faz uma reflexão sobre a experiência de desenvolver (e desafiar) um jogo de vídeo-game onde a arquitetura tem um papel fundamental, seja para o programador ou para o jogador. Os casos de estudo? Nada menos que quatro grandes jogos históricos de nossos tempos: Starcraft, Age of Empires, Diablo e Dungeon of the Endless.

Em MetaSpace temos introduzido de forma geral os desafios que os programadores de games enfrentam quando criam arquiteturas, cidades e inclusive cartografias. Nesta ocasião iremos um passo adiante: o que ocorre quando um jogo não oferece uma narração nem um mapa fixo, mas um sistema arquitetônico que pode ser apropriado pelo jogador? Como responde a equipe de desenho diante disso?

Vamos dar uma olhada.

StarCraft II Wings of Liberty Imagem © Blizzard Entertainment - 2010.

Arquiteturas para o Sistema

Um exemplo clássico deste tipo de jogos é Starcraft: um jogo de estratégia em tempo real, onde devemos administrar uma base militar para gerar um exército poderoso o suficiente para superar nosso oponente. Nos jogos deste gênero, geralmente começamos a partida com apenas um centro de comando e alguns trabalhadores, que deverão coletar os recursos necessários para ampliar nossas instalações, gerar unidades adequadas e responder taticamente às diferentes situações que o inimigo planeje. Sempre há uma estratégia ótima na hora de enfrentar certas situações, o desafio está em saber adaptar rapidamente nosso estilo de jogo.

No fundo se trata de um sistema muito bem engrenado de recursos, edifícios e unidades. Sob a superfície estética está uma rede de atributos, pontos de danos e velocidades de movimento. Como uma espécie de xadrez hipercomplexo, o verdadeiro núcleo do jogo está em suas regras, as que determinam sua jogabilidade e sua complexidade. Quando mais tempo jogamos, melhor compreendemos o sistema, e portanto podemos prever as ações do oponente. O ganhador será aquele que melhor conheça o sistema e se adapte a ele.

Edifícios de Starcraft em escala, Imagem via sc2.gameguyz.com.

Tudo está muito bem, mas tantos números e regras seriam uma chatice se não contextualizados. Construir um ponto de recolhimento de materiais não é igual a teletransportar uma pirâmide colossal de um planeta alienígena, certo? Aqui está o desafio do programador. Deve ser capaz de traduzir as regras do sistema em um conjunto de desenhos facilmente reconhecíveis, identificáveis por seu papel dentro do jogo e adaptáveis a qualquer situação que os jogadores possam planejar. Isto se aplica ao desenho de personagens e unidades, mas também ao de edifícios e cidades, à arquitetura.

Deste modo teremos grandes edifícios principais que se sobressaem do resto, outros de tamanho intermediário e pequenos postos de avanço. Este desenho deverá adaptar-se ao estilo de jogo que se queira: em Starcraft, por exemplo, os Terran são humanos do futuro, com edifícios supertecnológicos que podem voar. Por outro lado, os Zerg são uma raça alienígena baseada no orgânico, incluindo sua infraestrutura de edifícios vivos. Em ambos os casos, as construções de ambas as raças devem ser facilmente reconhecíveis pelos jogadores, seja qual for a configuração que estes os conferem. Aqui está o desafio.

Árvore de Tecnologia Terran da versão beta de Starcraft II, incluindo os diferentes edifícios que podemos construir. © Blizzard Entertainment - 2010.

Esta mesma problemática se aplica a jogos de ambientação bem distinta, como o conhecidíssimo Age of Empires. Neste jogo, a lógica é exatamente a mesma: construir uma base e vencer o oponente, mas ao invés de controlar alienígenas do futuro, seremos Joana D'arc, William Wallace ou El Cid. Gestionaremos recursos, criaremos nossas estruturas e treinaremos soldados de um modo análogo como fazemos em Starcraft, mas a interação entre estes elementos será diferente, assim como sua contextualização.

Age of Empires se verifica o cuidadoso desenho de seus edifícios, entre os quais se destacam claramente os castelos. Este jogo possui sua própria enciclopédia, onde podemos consultar o papel histórico que desempenharam, os castelos reais que se basearam seus programadores. Seu alcance foi tanto que anos depois do lançamento original foram desenvolvidos projetos de melhora de seus modelos gráficos, como o Architecture Renovation Mod [inglês], que realiza diversas mudanças na arquitetura para seja mais densa, com mais detalhe e realismo, ainda que mais incômoda na hora de jogar.

Exemplo de cidade do Oriente Medio no Architecture Renovation Mod de Age of Empires. Imagem Vía www.reddit.com.

Sistemas de arquitetura

Por outro lado, existem jogos que objetivam justamente o desafio contrário: não se trata de dar forma a um sistema que o jogador irá lidar, mas criar um sistema de espaços capaz de se reorganizar em cada partida, planejando níveis diferentes em cada partida. Por exemplo, na saga Diablo devemos avançar através de uma masmorra, que será diferente cada vez que entramos nela, propondo um desafio permanente e altamente viciante

Westmarch, Cenário urbano em Diablo 3: Reaper of Souls. Imagem © Blizzard Entertainment - 2013.

No entanto, como em todo sistema, estes jogos possuem regras permanentes que regem seus espaços. Ainda que possam mudar, necessitam manter uma mínima coerência. Por exemplo, se pretendemos que o jogador enfrente uma cidade de corredores estreitos, as "peças arquitetônicas" do sistema deverão respeitar esta regra. Se queremos que o jogador se perca em um vasto deserto com poucos sinais para se orientar, a regra deverá ser outra.

Dungeon of the Endless Imagem © Amplitude Studios - 2014.

Outro bom exemplo deste planejamento é Dungeon of the Endless, um título que, como seu nome indica, nos propõe a enfrentar uma masmorra que pode chegar a ser interminável. Para isso, nos apresenta um sistema de ambientes e corredores predeterminados que se ordenam de forma distinta em cada nível. Alguns quartos possuem estações onde podemos construir máquinas que nos ajudem a avançar, outras não oferecem nenhuma ajuda ou inclusive possuem armadilhas, monstros ou nuvens venenosas. Neste sentido o desafio é muito interessante, já que nunca sabemos o que vamos encontrar, estamos completamente entregues aos deuses do azar. Uma partida pode ser simples ou apresentar desafio atrás de desafio, fazendo com que a gente "sofra", mas proporcionando uma grande sensação de superação se conseguimos "derrotar o sistema".

Este exemplo possui três elementos que me parecem especialmente interessantes para os arquitetos. O primeiro é sua interface como uma espécie de planta ligeiramente em forma de fuga, onde as paredes aparecem seccionadas. O segundo é seu mapa desenhado para gestionar os quartos que já tivemos acesso. O terceiro e mais importante é a porta, já que o que aparecer ao abrir um novo ambiente pode virar o jogo completamente. O título explora este elemento, e apresenta portas pesadas que se abrem lentamente com um rangido, provocando uma intriga insuportável sobretudo se vamos mal no jogo. Encontramos finalmente este tesouro que nos faça ganhar? Ou aparecerá uma besta interdimensional digna de insultos e maldições ?

'davesmapper.com' é ferramenta que gera mapas aleatórios para jogos de RPG.

Se vemos com um pouco de perspectiva, podemos perceber em Dungeon of the Endless a inspiração nos sistemas de mapas de RPG utilizados desde os anos 70, onde o narrador ordena as salas de forma diferente em cada interação. A ferramenta davesmapper é um bom exemplo disto, gerando milhares de mapas aleatórios para jogos de RPG.

Crescer entre sistemas

De este modo, desenhar um sistema de espaços aleatórios e contextualizados para conferi-los coerência não é algo original dos vídeo-games. Desde o tabuleiro de xadrez como campo de batalha ao jogo de escadarias ou o Monopoly, em nossa infância (ou nem tão jovem assim) nos divertimos transformando casas e hotéis em lugares estratégicos. 

De fato, a arquitetura como sistema é um assunto de pesquisa presente desde o Movimento Moderno, buscando proporcionar grande quantidade de soluções a partir de uma série limitada de elementos. Muitos destes projetos se apresentaram como um jogo de construção. Todos temos uma vaga ideia de como deve ser o quarto principal (o quarto do dragão), o escritório do pai (a sala do trono) e o sótão (as catacumbas malditas). Se partimos de um foco na arquitetura sistêmica, serão as regras que estabelecemos entre estes elementos as que darão consistência para o jogo.

Os vídeo-games nos ensinam que, para que o jogo além de funcionar seja divertido e interessante, necessitamos também respirar um caráter próprio e inovador em seus elementos. Necessitamos fazer a imaginação voar.

Eames House Blocks - Jogo desenhado por Charles e Ray Eames, basado no sistema de casas experimentado na Case Study No. 8 em 1949.

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Sobre este autor
Cita: Saga, Manuel. "De Starcraft a Age of Empires: quando a arquitetura é o vídeo-game" [De Starcraft a Age of Empires: cuando la arquitectura es el videojuego] 09 Abr 2016. ArchDaily Brasil. (Trad. Santiago Pedrotti, Gabriel) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/785083/de-starcraft-a-age-of-empires-quando-a-arquitetura-e-o-video-game> ISSN 0719-8906

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